Compotas
de praia
Todos os anos, no dia 1
de agosto, a azáfama era intensa. A mudança para a casa da praia – que na
verdade era um palheiro arrendado, com mobílias giríssimas mas sem qualquer
tipo de equipamento electrodoméstico (nem o fogão funcionava …) – era uma odisseia que implicava o esforço de
todos. Como a família era numerosa, além do substituto do citado fogão, era
necessário transportar um frigorífico, vários divãs e cadeiras de lona, quilos
de lençóis e toalhas, o caixote dos jogos que acompanhava o da literatura de
veraneio (que incluia obrigatoriamente alguns albuns do tio patinhas &
afins, números mais que desatualizados das Selecções do Reader’s Digest e os
incontornáveis romances policiais da colecção Vampiro), mercearias (na altura
existia apenas um supermercado na cidade mais próxima), louças e talheres, para
além do pequeno saco de viagem a que cada um tinha direito para arrumar os seus
pertences. Tudo isto era carregado numa camioneta de caixa aberta onde o
motorista era apoiado por um dos rapazes mais velhos, enquanto a família era
conduzida pelo Pai em duas levas. Na primeira, os mais crescidos, com o
objetivo de limpar a casa, descarregar a camioneta e arrumar toda a tralha,
enquanto a segunda se destinava à Mãe e aos mais novos.
O primeiro dia na praia
passava a correr e quase nunca tínhamos tempo para ir até ao mar. Os restantes
tinham uma rotina muito semelhante: depois do pequeno-almoço tomado, os mais velhos
(nem todos …, os notívagos voluntariavam-se para ajudar a Mãe a preparar o
almoço) seguiam para o areal com os mais pequenos equipados com o respetivo
balde e acessórios, bem agasalhados e de chapéu enterrado na cabeça por causa
do nevoeiro matinal e da baixa temperatura própria das praias onde as
más-línguas dizem que «o inverno passa o verão». A hora do banho era
invariavelmente por volta do meio-dia, perante o ar vigilante do Pai.
Frequentemente, era mais banho de areia que outra coisa, daí a utilidade dos
baldes para o «duche final». Os mais crescidos, gelados com os salpicos dos «chapinhanços»
anteriores, mergulhavam de seguida sem hesitação nas águas batidas e frias,
certos de que havia sempre um jogo de ringue para aquecer os friorentos. Depois
do almoço, a tarde corria lentamente à sombra do toldo da barraca, onde os
bebés dormiam a sesta. A leitura de revistas, o jogo do prego e a conversa
pachorrenta e sem rumo são prazeres que recordo com imensa saudade. Ao fim da
tarde, quando a maré estava baixa, passeávamos à beira-mar onde conchas e
búzios eram recolhidas para as «compotas da praia» – frascos de vidro cheios
daquelas preciosidades que decoravam a cozinha durante o inverno: «para não
termos tantas saudades do mar!» – dizia a Mãe. Se o tempo se estragava ou a
nortada tornava insuportável a permanência no areal, consolávamo-nos com
deliciosas bolachas americanas e passeios de bicicleta.
Finalmente, quando os
dias começavam a ficar mais curtos e os morenos exibiam bronzeados invejáveis (enquanto
os louros apenas se podiam gabar de algumas sardas), regressávamos para
recomeçar as aulas. Este era, para mim, um período igualmente intenso e divertido.
O cheiro dos cadernos novos, dos lápis e das borrachas invadiam a casa. Como os
livros passavam de irmão para irmão ou eram partilhados, a escolha do papel que
os ia forrar era cuidadosamente negociada e as mazelas provocadas por
utilização negligente penalizadas. Os horários eram afixados num placard e a
participação nas tarefas diárias discutida em assembleia familiar.
Mais tarde, muito mais
tarde, percebi que os benefícios destas temporadas passadas à beira-mar se
colhem a vários níveis: compreender, por um lado, que descansar não implica
forçosamente destinos exóticos em cenários de agência de viagem; apreciar, por
outro, o quão retemperador pode ser um par de semanas passadas numa rotina
simples de praia; finalmente, sentir o quanto importante é ter-se,
efetivamente, férias, um período em que, calmamente, beneficiando dos ares
marítimos, se recuperam forças, fortalecem relações e, numa agradável quietude,
nos começamos a preparar para o que, para muitos de nós é, na verdade, o
princípio de um novo ano – e que se quer, naturalmente, repleto de desafios, de
afazeres e novidades…
Teresa Pedroso de Lima
:) com este pequeno relato, lembrei-me das histórias da avó, da minha mãe e dos tios sobre essas férias na praia, entre outras. Lembrei-me também das odisseias por cá, quando íamos todos para a Praia da Vitória cheios de apetrechos, e como cantávamos em coro com a Avó a Nossa ^Senhora, durante o caminho para a praia, pedindo que o nevoeiro e a chuva só estivessem em Angra ou na recta... belos tempos, belas memórias. :)
ResponderEliminarComo disse um tio meu, uma vez, as memórias são o alimento da alma. Obrigada tia!
Aqui está uma bela síntese das nossas epopeias veraneantes! A variável do tempo está muito condensada que cabe num frasco de compota. Mas só quem viveu essas férias é que se apercebe dos saltos no tempo! Afinal, foram quase 40 anos, pelo menos 7 casas diferentes e 3 praias diferentes. Mas, a esta distância, tudo me parece igual e quando me transporto para aquele tempo tenho sempre a mesma idade: era filho e estava de férias na praia!
ResponderEliminarFui dezenas de vezes na camioneta da escola, ao lado do Sr. Zé Augusto ou do Sr. Zé(?).
Obrigado pela crónica, T., está óptima! Apesar do trabalhão que dava, eram tempos felizes que merecem ser sempre relembrados!
Gostei muito tia:)
ResponderEliminarÉ com muita nostalgia e saudade que recordo as idas à praia tão aventureiras e tão únicas na companhia da família Pedroso Lima...:)Um grande beijinho